sábado, novembro 02, 2013

DIA DE NOJO




DIA DE NOJO 

(Rubens Enderle, lá em Florença, vai gostar dessa prosa familiar, mas vai me cobrar alguma coisa.rs)

                      Estou de luto.  Bem ao gosto do dia de hoje; dark total e alma constrita, mais a tarja preta e o fumo na porta. Graças à relatividade do tempo, estou chorando por minha mãe!

 Saudade dela que estava a merecer um pranto que lava a alma e deixa seu fluido benfazejo em mim, enquanto ela ascende mais e mais à luz!

                      Chorar era com ela; uma pessoa fundamentalmente emocional, na alegria e na tristeza. Vivaz, esperta, uma aquariana legítima, com seus fados e suas manhas, com muito pouca cultura, mas o suficiente para se portar como uma dama, à altura de seu culto marido. Jamais cometeu uma gafe! No entanto, lembro  dela estar sempre a cuidar os resvalões sociais de meu pai, um artista desastrado que acabou, mesmo, morrendo de desastre em via pública.

                      Paulo de tal, um excelente terapeuta que frequentei, ousou um dia julgá-la pretensiosa, quando eu relatava um de seus emocionantes lances de humildade: indignação total! O grosseiro, inda que competente , não conseguiu captar a profundidade de seu gesto: falava-lhe eu dos muitos momentos em que se sentia tão feliz em estar casada com meu pai que ao saber da infelicidade matrimonial de uma de suas tantas amigas, omitia seu estado para não gerar comparações, ou coisa parecida. Dizia-me ela:

-comadre Maria é tão infeliz com compadre João, que nem lhe contei da viagem que fizemos à Montevidéu: dançamos tango  a  noite inteira de rosto colado e ele cantou no meu ouvido todos os que sabia a letra!

Então isso autoriza a um médico  chamar minha carinhosa e elegante mãe de arrogante? Mesmo eu tendo informado que essa foi uma confissão feita num cochicho muito reservado a mim, a filha mais velha e sua melhor amiga?  Verdade que essa amizade só pode se estreitar em minha adultez, vencida a  indefectível e saudável  “encrenca edipiana” ; isso foi duro, meu pai era um pitéu! (psiu!). Então antes dos 18 anos eu estava quase livre desse romance familiar. Ufa, que alívio!

                    No entanto, ainda me agrada lembrar com certa doçura e orgulho o fato de: ao saber que eu havia sido aprovada em tudo o que se exigia para entrar no Curso de Psicologia na capital, tentou fazer e fez uma “ceninha” de puro ciúme, mas minha sábia e inculta mãe interferiu:

                      -não liga pra ele! Vai sim, minha filha, aqui não tem esse curso. Vais valer muito mais no futuro; deixa que eu acomodo ele.  Assim, habilmente, mamãe cortou a tentativa  velada de posse, sobre sua primogênita, de meu amado pai: ingênuo e desastrado!

                      Parei de chorar um tantinho para almoçar com uns amigos novos aqui da minha praia e a iguaria era “cozido” , em minha casa se dizia “fervido” ou “puchero” como os castelhanos vizinhos. Lembrei dela, claro!  Sempre me intrigou o fato de não sendo a mãe de origem rural, ter um galinheiro nos fundos da casa e, sendo, uma cozinheira de mão cheia era especialista em “Galinha ao molho pardo” . Muita incongruência: delicada e linda, tão urbana para ter galinheiro, ia até lá,  escolhia a mais gorda de suas bem cuidadas frangas, torcia-lhe o pescoço e com uma faca cortava a penosa para lhe tirar o sangue. Abaixo já esperava um pote com vinagre para o sangue não talhar. Alí estava  a matéria prima com que ela preparava o melhor molho pardo do mundo. Andei por tantos e tantos lugares nessa vida e nunca achei algo sequer parecido. Tinha pão torrado em baixo. Ah, como lembro dessa delícia!

                       Meu pai amava as filhas, tenho certeza disso, mas sempre primeiro ela. Sempre ela, sua morenice galega, dentes brancos, olhos enormes e bem pretos, um sorriso de deusa, simples, uma simpatia irradiante  espalhava candura e sedução e ele morria de ciúme. Aliás, um do outro. Mas isso é outra história que cabe num longo texto e merece.

                       Ganhei grande parte de meu tempo contemplando essa felicidade: eu tinha ao vivo, numa tela gigante uma gigantesca história de amor, mesmo que vivesse no Cine Capitólio assistindo romances que marcaram época. A época em que  ainda se podia esperar alegria: Que difícil ficou a vida conjugal depois deles e nos tempos que se seguiram, para quem presenciou esse idílio!  Tudo depois deles me parece competitivo,  mercantil, safado, mal intencionado ; uma aura de corrupção, falsidade, assolou as relações de amor! Que amor? O consumismo e a voracidade decorrente, fazem da traição uma saída contumaz, poderosa e triste.  Nossos meninos são filhos da concorrência. Assistem inflamados discursos para ver quem sabe e pode mais.

 CHEGA DE BLASFEMAR, eu vim para chorar!

            Ao sair da casa de meus amigos, depois do almoço, passei no camelô e pedi à moça:

-Dá-me óculos bem escuros para chorar no dia dos mortos. A moça perguntou:

-por que, a sra perdeu alguém recentemente?

Eu disse: - não, eu perco todos os dias em que me lembro da figura amada de minha mãe!

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Chamei Drummond para me consolar:

“Por que Deus permite que as mães vão se embora?

Mãe não tem limite. É tempo sem hora.

Luz que não se apaga quando sopra o vento e a chuva desaba.

Veludo escondido na pele enrugada....

Mãe na sua graça é eternidade.

Por que Deus se lembra mistério-profundo de tirá-la um dia?

Fosse eu rei do mundo baixava uma lei:

Mãe não morre nunca.

Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho.

4 comentários:

COISAS DE CARMEN disse...

Não tive tempo de corrigir o texto como merecia. Tampouco o Blogger aceitou a inserção de figuras, hoje. Eu preciso de ilustrações, caramba!!!!

Bilhete pra mãe: querida, estou ficando velha, mas não me "acomodei" no mundo: estou fazendo cada vez mais coisas e falando muito mais....veja do que te livraste!

cristina disse...

Carmem mesmo tendo sido professora de 1 SÉRIE agora não sei nem mais colocar vírgulas, mas o que vou te dizer aqui é muito verdadeiro escreveste lindamente e consegui lendo teu artigo também ver minha mãe e também tua ex sogra OBRIGADA cRISTINA

COISAS DE CARMEN disse...

AGRADECIMENTOS á:
Maria Firmina Oliveira, Elisete Pereira, Flavia Moreira Soares, Suzana Jardim, Gilza Panny, Fernanda Moreira Soares, M. Inês Beltrão, Vera Lúcia Andrada, Rute Gebler, Cristina Schiavon, Maria Elizabeth Araújo, Lina targa...
Pessoas que curtiram no FACEBOOK e teceram comentários sobre a crônica.

Unknown disse...

...que lindo!!!! Adorei...quem dera todos os filhos pudessem ter essa ótica enquanto os pais ainda vivem. O perdão é gesto mais sublime do ser humano. Perdoemo-nos todos para vivermos em paz...