
DIA DE NOJO
Estou de luto. Bem ao gosto do dia de hoje; dark total e
alma constrita, mais a tarja preta e o fumo na porta. Graças à relatividade do
tempo, estou chorando por minha mãe!
Saudade dela que estava a merecer um pranto
que lava a alma e deixa seu fluido benfazejo em mim, enquanto ela ascende mais
e mais à luz!
Chorar era com ela; uma
pessoa fundamentalmente emocional, na alegria e na tristeza. Vivaz, esperta,
uma aquariana legítima, com seus fados e suas manhas, com muito pouca cultura,
mas o suficiente para se portar como uma dama, à altura de seu culto marido.
Jamais cometeu uma gafe! No entanto, lembro dela estar sempre a cuidar os resvalões
sociais de meu pai, um artista desastrado que acabou, mesmo, morrendo de
desastre em via pública.
Paulo de tal, um
excelente terapeuta que frequentei, ousou um dia julgá-la pretensiosa, quando
eu relatava um de seus emocionantes lances de humildade: indignação total! O
grosseiro, inda que competente , não conseguiu captar a profundidade de seu
gesto: falava-lhe eu dos muitos momentos em que se sentia tão feliz em estar
casada com meu pai que ao saber da infelicidade matrimonial de uma de suas
tantas amigas, omitia seu estado para não gerar comparações, ou coisa
parecida. Dizia-me ela:
-comadre
Maria é tão infeliz com compadre João, que nem lhe contei da viagem que fizemos
à Montevidéu: dançamos tango a noite inteira de rosto colado e ele cantou no
meu ouvido todos os que sabia a letra!
Então isso
autoriza a um médico chamar minha carinhosa e elegante mãe de arrogante? Mesmo eu tendo informado que essa foi uma confissão feita num cochicho muito
reservado a mim, a filha mais velha e sua melhor amiga? Verdade que essa amizade só pode se estreitar
em minha adultez, vencida a indefectível
e saudável “encrenca edipiana” ; isso
foi duro, meu pai era um pitéu! (psiu!). Então antes dos 18 anos eu estava quase
livre desse romance familiar. Ufa, que alívio!
No entanto, ainda me agrada
lembrar com certa doçura e orgulho o fato de: ao saber que eu havia sido
aprovada em tudo o que se exigia para entrar no Curso de Psicologia na capital,
tentou fazer e fez uma “ceninha” de puro ciúme, mas minha sábia e inculta mãe
interferiu:
-não liga pra ele! Vai
sim, minha filha, aqui não tem esse curso. Vais valer muito mais no futuro;
deixa que eu acomodo ele. Assim,
habilmente, mamãe cortou a tentativa velada de posse, sobre sua primogênita, de meu
amado pai: ingênuo e desastrado!
Parei de chorar um
tantinho para almoçar com uns amigos novos aqui da minha praia e a iguaria era “cozido”
, em minha casa se dizia “fervido” ou “puchero” como os castelhanos vizinhos.
Lembrei dela, claro! Sempre me intrigou
o fato de não sendo a mãe de origem rural, ter um galinheiro nos fundos da
casa e, sendo, uma cozinheira de mão cheia era especialista em “Galinha ao
molho pardo” . Muita incongruência: delicada e linda, tão urbana para ter
galinheiro, ia até lá, escolhia a mais
gorda de suas bem cuidadas frangas, torcia-lhe o pescoço e com uma faca cortava
a penosa para lhe tirar o sangue. Abaixo já esperava um pote com vinagre para
o sangue não talhar. Alí estava a matéria
prima com que ela preparava o melhor molho pardo do mundo. Andei por tantos e
tantos lugares nessa vida e nunca achei algo sequer parecido. Tinha pão torrado
em baixo. Ah, como lembro dessa delícia!
Meu pai amava as filhas,
tenho certeza disso, mas sempre primeiro ela. Sempre ela, sua morenice galega,
dentes brancos, olhos enormes e bem pretos, um sorriso de deusa, simples, uma
simpatia irradiante espalhava candura e
sedução e ele morria de ciúme. Aliás, um do outro. Mas isso é outra história
que cabe num longo texto e merece.
Ganhei grande parte de
meu tempo contemplando essa felicidade: eu tinha ao vivo, numa tela gigante uma
gigantesca história de amor, mesmo que vivesse no Cine Capitólio assistindo
romances que marcaram época. A época em que ainda se podia esperar alegria: Que difícil
ficou a vida conjugal depois deles e nos tempos que se seguiram, para quem
presenciou esse idílio! Tudo depois
deles me parece competitivo, mercantil,
safado, mal intencionado ; uma aura de corrupção, falsidade, assolou as
relações de amor! Que amor? O consumismo e a voracidade decorrente, fazem da
traição uma saída contumaz, poderosa e triste. Nossos meninos são filhos da concorrência.
Assistem inflamados discursos para ver quem sabe e pode mais.
CHEGA DE BLASFEMAR, eu vim para chorar!
Ao sair da casa de meus amigos,
depois do almoço, passei no camelô e pedi à moça:
-Dá-me
óculos bem escuros para chorar no dia dos mortos. A moça perguntou:
-por que, a
sra perdeu alguém recentemente?
Eu disse: -
não, eu perco todos os dias em que me lembro da figura amada de minha mãe!
********************************************
Chamei Drummond
para me consolar:
“Por que
Deus permite que as mães vão se embora?
Mãe não tem
limite. É tempo sem hora.
Luz que não
se apaga quando sopra o vento e a chuva desaba.
Veludo
escondido na pele enrugada....
Mãe na sua
graça é eternidade.
Por que Deus
se lembra mistério-profundo de tirá-la um dia?
Fosse eu rei
do mundo baixava uma lei:
Mãe não
morre nunca.
Mãe ficará
sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de
milho.
4 comentários:
Não tive tempo de corrigir o texto como merecia. Tampouco o Blogger aceitou a inserção de figuras, hoje. Eu preciso de ilustrações, caramba!!!!
Bilhete pra mãe: querida, estou ficando velha, mas não me "acomodei" no mundo: estou fazendo cada vez mais coisas e falando muito mais....veja do que te livraste!
Carmem mesmo tendo sido professora de 1 SÉRIE agora não sei nem mais colocar vírgulas, mas o que vou te dizer aqui é muito verdadeiro escreveste lindamente e consegui lendo teu artigo também ver minha mãe e também tua ex sogra OBRIGADA cRISTINA
AGRADECIMENTOS á:
Maria Firmina Oliveira, Elisete Pereira, Flavia Moreira Soares, Suzana Jardim, Gilza Panny, Fernanda Moreira Soares, M. Inês Beltrão, Vera Lúcia Andrada, Rute Gebler, Cristina Schiavon, Maria Elizabeth Araújo, Lina targa...
Pessoas que curtiram no FACEBOOK e teceram comentários sobre a crônica.
...que lindo!!!! Adorei...quem dera todos os filhos pudessem ter essa ótica enquanto os pais ainda vivem. O perdão é gesto mais sublime do ser humano. Perdoemo-nos todos para vivermos em paz...
Postar um comentário