“Troquem-se as dores em beijos,
do luto, arranque-se o véu
irmãos, o preito é devido .....” (Lobo da Costa)
O cenário era o mais simples, não o mais
corriqueiro: uma capela mortuária, uma urna modesta, em volta alguns familiares e amigos de descendentes de colonos, trabalhadores humildes.
Na esquife jazia
o corpo precocemente envelhecido de uma
mulher de 48 anos, aparentando mais de 70, pelos maus-tratos da vida e da
doença. Uma pequena grande mulher; um
exemplo de servidão humana, sem nunca ter perdido a altivez, a rebeldia e a
força de fazer valer suas idéias, mesmo que equivocadas.
Ela havia entrado em minha vida há pouco tempo, uns dois anos. Não trabalhou para mim, mas trabalhou comigo, o que tem uma boa diferença.
Chegou como se nos conhecêssemos há muito tempo e , sem pedir licença, com
ousadia, fez-se íntima. Por alguma razão que não saberei explicar, aceitei
passivamente essa inserção em todos os setores de minha vida.
Quis introduzir
modificações em minha casa: plantou flores em meu jardim, mudou , para melhor,
a disposição de alguns móveis, pôs entulhos fora e me tratava por “tu”, desconsiderando sua
posição, ou mesmo a diferença de idade entre nós.
Desacatava, sem cerimônia, um
pedido simples meu como: “não precisa lavar os vidros”. Lavava-os se achasse
que era devido.
Aquela
figurinha miúda, deslizava de maneira etérea pela casa numa rapidez e eficiência , com uma urgência de cumprir tudo a
contento, que me deixava cansada!
Em meu trabalho, também a introduzi e ,
óbvio, queria me ensinar coisas que eu sabia mais, mas também
aprendi coisas importantes com ela. No entanto, era facílimo de lidar com sua insubordinação: com humor, dava-se por vencida; com ar debochado, seu protesto, cedia.
Vez por outra, ou muito freqüentemente, me tomava
por consultora de seus problemas, de sua saúde, de seus amores e desamores.
Fingia não ouvir quando eu dizia que não sabia sobre tal assunto; colocava
pilhas de resultados de exames na minha frente e queria um diagnóstico, um
parecer, mesmo que o médico já tivesse se posicionado. Sem o meu aval, nada
feito ... Por quem ela me tomava ? Morreu com ela esta resposta .
Quando ela me
chegou, jamais perguntou qual a minha profissão,
religião, ou estado civil, mas agia como se soubesse de
tudo. Atribuía-me uma onipotência absoluta no que ela queria saber, mas,
contraditoriamente, impunha seu jeito de fazer as coisas. Difícil brigar com
ela, aliás impossível, porque acedia, rindo, inteligentemente, como quem
sabe de seu atrevimento.
Obsessiva, teimosa, muitas vezes perguntava por
perguntar, acabava fazendo como
queria ; ciumenta, possessiva, temia que outra pessoa fosse fazer o que lhe
competia; virginiana compulsiva, arrastava-se no chão para ir até o mais
recôndito cantinho onde uma poeira teimasse em se esconder.
Assim era o
perfil desse estranho ser; meio mulher,
meio velha, meio moleca, meio guria, meio masculina, meio empresária, meio
cliente, meio patroa, meio empregada, enfim, difícil uma definição clara de sua
personalidade !
Teve dois
filhos de paixões diferentes, mas nunca se casou ; um rapaz com 24 anos
e uma moça com 17 , quando os vi pela última vez naquela primavera ventosa do sul.
Dedicava-se muito a todos, descuidando dela própria. Doente, pois já havia
retirado dois tumores de pele no espaço de um ano, afora outras complicações ;
hipertensão e , por último diabetes, o que veio a ser o fator decisivo para sair dessa vida.
Soube que eu adoro
manjericão, plantou um pé no meu jardim; louro bastante no feijão, roubou
galhos e mais galhos da vizinha, cuja árvore adentrava meu quintal. Amiga de todos em volta , ou dos que
chegavam.
Era , aparentemente, seca, mas seus olhos
umedeciam com facilidade: virginiano tem fobia afetiva, mas é capaz de amar muito, secretamente. Isso faz sofrer!
Acho agora, que sempre soube que eu lia seu coração bondoso e que eu a amava do
jeito que ela gostava de ser amada, sem declarações, sem arroubos, sem afrontas
, mas com gestos.
Na primeira visita que fiz a ela no hospital,
cheguei fazendo cócegas em suas pernas, sem dizer nada, seus olhos se abriram, brilharam !!!
Pelo menos uma vez, enquanto ainda estava
trabalhando, me disse, sem cerimônia, com uma vassoura ou pano na mão:
- estou
morrendo!
Eu respondi com algo do tipo:
-
que bom, uma a menos pra incomodar !! Aí ria e acreditava, por certo , que ela estava enganada, mas eu não estava, infelizmente...
Alguma coisa me dizia, no entanto, em
que pese seu amor pelas coisas da vida, pelas festas, pelos filhos, pelas
plantas, enfim, que morrer não era algo ruim para ela; sua sabedoria intuitiva
gozava com essa ideia, talvez um gozo ligado
ao sossego, à paz, ao descanso, daí o fato de negar tanto sua debilidade
física.
Não choro, de modo algum, porque seria egoísta,
a falta que ela me faz; a saudade de sua presença sólida, eficiente, resoluta,
querida, grosseiramente carinhosa, mas chorei com uma ressonância dolorosa no peito, ao assistir o
carinho e gratidão de seus dois filhos, tanto durante a enfermidade, quanto na
despedida derradeira; ambos , de mãos dadas, acarinhavam a mãe e a “consolavam”
, numa espécie de diálogo. Eu ouvi:
- mãezinha, querida, trabalhaste tanto, por nós, por todos, agora
descansa...
Que prova incontestável da mulher maravilhosa, da
verdadeira mãe !
Ah, ia me esquecendo, o único homem que amou, penso
eu, pelo que colhi em nossas confidências, estava lá. O pai de sua filha.
Quieto, cabeça baixa, mas solidário. Ela merecia e como !!