terça-feira, novembro 26, 2013

PREITO DE AMOR E GRATIDÃO

Troquem-se as dores em beijos,
  do luto, arranque-se o véu
  irmãos, o preito é devido .....” (Lobo da Costa)





              O cenário era o mais simples, não o mais corriqueiro: uma capela mortuária, uma urna modesta, em volta alguns  familiares e amigos de descendentes de colonos,  trabalhadores humildes.
                       Na esquife jazia o corpo  precocemente envelhecido de uma mulher de 48 anos, aparentando mais de 70, pelos maus-tratos da vida e da doença. Uma  pequena grande mulher; um exemplo de servidão humana, sem nunca ter perdido a altivez, a rebeldia e a força de fazer valer suas idéias, mesmo que equivocadas.
                  Ela havia entrado em minha vida há  pouco tempo, uns  dois anos.  Não trabalhou para mim, mas trabalhou comigo, o que tem uma boa diferença.
                    Chegou como se nos conhecêssemos há muito tempo e , sem pedir licença, com ousadia, fez-se íntima. Por alguma razão que não saberei explicar, aceitei passivamente essa inserção em todos os setores de minha vida.
                  Quis introduzir modificações em minha casa: plantou flores em meu jardim, mudou , para melhor, a disposição de alguns móveis, pôs entulhos fora e  me tratava por “tu”, desconsiderando sua posição, ou mesmo a diferença de idade entre nós. 
              Desacatava, sem cerimônia, um pedido simples meu como: “não precisa lavar os vidros”. Lavava-os se achasse que era devido.
                Aquela figurinha miúda, deslizava de maneira etérea pela casa  numa rapidez  e eficiência , com uma urgência de cumprir tudo a contento, que me deixava cansada! 
                Em meu trabalho, também a introduzi e , óbvio, queria me ensinar coisas que eu sabia mais, mas também aprendi coisas importantes com ela. No entanto, era facílimo de lidar com sua insubordinação: com humor, dava-se por vencida; com ar debochado, seu protesto, cedia.
               Vez  por outra, ou muito freqüentemente, me tomava por consultora de seus problemas, de sua saúde, de seus amores e desamores. Fingia não ouvir quando eu dizia que não sabia sobre tal assunto; colocava pilhas de resultados de exames na minha frente e queria um diagnóstico, um parecer, mesmo que o médico já tivesse se posicionado. Sem o meu aval, nada feito ... Por quem ela me tomava ? Morreu com ela esta resposta .
            Quando ela me chegou, jamais perguntou qual a minha profissão, religião, ou estado civil, mas agia como se soubesse  de  tudo. Atribuía-me uma onipotência absoluta no que ela queria saber, mas, contraditoriamente, impunha seu jeito de fazer as coisas. Difícil brigar com ela, aliás impossível, porque acedia, rindo, inteligentemente, como quem sabe de seu atrevimento.
           Obsessiva, teimosa, muitas vezes perguntava por perguntar,  acabava fazendo como queria ; ciumenta, possessiva, temia que outra pessoa fosse fazer o que lhe competia; virginiana compulsiva, arrastava-se no chão para ir até o mais recôndito cantinho onde uma poeira teimasse em se esconder.
         Assim era o perfil  desse estranho ser; meio mulher, meio velha, meio moleca, meio guria, meio masculina, meio empresária, meio cliente, meio patroa, meio empregada, enfim, difícil uma definição clara de sua personalidade !
          Teve dois filhos de paixões diferentes, mas nunca se casou ; um rapaz  com 24 anos e uma moça com 17 , quando os vi pela última vez naquela primavera ventosa do sul.
      Dedicava-se muito a todos, descuidando dela própria. Doente, pois já havia retirado dois tumores de pele no espaço de um ano, afora outras complicações ; hipertensão e , por último diabetes, o que veio a ser o fator decisivo para sair dessa vida.           
        Soube que eu adoro manjericão, plantou um pé no meu jardim; louro bastante no feijão, roubou galhos e mais galhos da vizinha, cuja árvore adentrava meu quintal. Amiga de todos em volta , ou dos que chegavam. 
          Era , aparentemente, seca, mas seus olhos umedeciam com facilidade: virginiano tem fobia afetiva, mas é capaz de amar  muito, secretamente.  Isso faz sofrer!  
           Acho agora, que sempre soube que eu lia seu coração bondoso e que eu a amava do jeito que ela gostava de ser amada, sem declarações, sem arroubos, sem afrontas , mas com gestos.
         Na primeira visita que fiz a ela no hospital, cheguei fazendo cócegas em suas pernas, sem dizer nada,  seus olhos se abriram, brilharam !!!
         Pelo menos uma vez, enquanto ainda estava trabalhando, me disse, sem cerimônia, com uma vassoura ou pano na mão:
 - estou morrendo!  
       Eu respondi com algo do tipo:

- que bom, uma a menos pra incomodar !! Aí  ria e acreditava, por certo , que ela estava enganada, mas eu não estava, infelizmente...
    
            Alguma coisa me dizia, no entanto, em  que pese seu amor pelas coisas da vida, pelas festas, pelos filhos, pelas plantas, enfim, que morrer não era algo ruim para ela; sua sabedoria intuitiva gozava com essa ideia, talvez um gozo ligado ao sossego, à paz, ao descanso, daí o fato de negar tanto sua debilidade física.

          Não choro, de modo algum, porque seria egoísta, a falta que ela me faz; a saudade de sua presença sólida, eficiente, resoluta, querida, grosseiramente carinhosa, mas chorei com uma ressonância dolorosa  no peito,  ao assistir o carinho e gratidão de seus dois filhos, tanto durante a enfermidade, quanto na despedida derradeira; ambos , de mãos dadas, acarinhavam a mãe e a “consolavam” , numa espécie de diálogo. Eu ouvi:
    -  mãezinha, querida, trabalhaste tanto, por nós, por todos, agora descansa...
    Que prova incontestável da mulher maravilhosa, da verdadeira mãe !
Ah, ia me esquecendo, o único homem que amou, penso eu, pelo que colhi em nossas confidências, estava lá. O pai de sua filha. Quieto, cabeça baixa, mas solidário. Ela merecia e como !!


2 comentários:

Alvorecer disse...

Dolorido mas lindo ... meus sentimentos. Beijo

Alvorecer disse...

Dolorido ... mas lindo, meus sentimentos. Beijo